quarta-feira, 26 de setembro de 2012

E apostara no sonho…

Como que por um acaso, esbarramos a porta de casa com o mercenário que mudou definitivamente as nossas vidas. Intitulou-se vendedor de sonhos, os maiores que a humanidade almeja eternizar: a Juventude e a imortalidade.
A principio pareceu-nos cómico aquele encontro e principalmente aquele tipo de abordagem cigana, até porque só em contos de fada e na sensualidade vampiresca é que a juventude eterna revela-se possível e exequível. Mesmo reticentes ouvimos a história do homem aparentemente comum, com feições precisas e grosseiras. 
O facto que nos prendeu a atenção foi a quantidade de coisas que o homem carregava consigo, pareceu-nos a prior tratar-se de tralha velha e por isso associamo-lo a  mendicidade. No entanto, as suas falas eram de uma convicção dogmática, ao ouvi-lo, podíamos sentí-lo ao que nos detívemos por alguns instantes.
Disse-nos então o mercenário que quem de boa fé adquirisse de  seus pertences, teria a dádiva da juventude e da imortalidade. Mais do que a certeza, moveu-nos a fé e uma certa dose de curiosidade, de modo que cada um de nós optou por tomar por seu o bem que queria adquirir para si. Eu puxei para mim a  carteira, castanha e desbotada. Uma carteira que não tinha  adereço especial ou alguma coisa mais que a valorizasse. Era apenas uma carteira comum.
Mal toquei nela transformou-se substancialmente aos meus olhos. Era uma carteira velha, isso não mudou, parecia uma avó querida que a gente ama a exaustão. O uso excessivo ou a “muita” idade das avós sempre faz-me pensar em amor, na preservação dos laços. Eu na verdade, sempre amei a consistência das coisas, das relações,das pessoas e aquela carteira despertava em mim esse afecto e eu quis pronunciá-lo ao comprá-la para mim.
É bem verdade que o afecto não teve a sua contribuição  naquela relação nova que se criava entre mim e a carteira, no entanto, teve maior relevância a vontade da carteira em que eu fosse a sua legítima proprietária, como se ela tivesse me escolhido criteriosamente. Ousava dizer até que chamou-me pelo primeiro nome.
Paguei o preço, irrisório, diga-se.
Tinha eu na altura 34 anos. Já se me viam as primeiras rugas, principalmente as que contornam o nariz e as das dobras dos olhos ao sorriso. Sentia-me uma mulher madura que vivera toda a intensidade da sua idade. Aproveitara pedagógica e religiosamente cada fase que a vida apresentara-me, sem dúvida amava cada ruga do meu rosto; não digo a beleza da ruga, sim a história que esta contava. Nunca fora daquelas pessoas que se queixam da idade. Pelo contrário apreciava cada nova etapa com o fervor da descoberta que acontece na puberdade a todos.
Era casada havia onze anos e mãe de uma linda menina de dez anos. Tinha uma história atrás de mim. Era o que eu mais amava em mim. Podia dividir a minha vida em passado, presente  e futuro. A vida comigo seguia o seu curso.
Fiquei estarrecida a olhar a carteira e não olhei para mim. Havia-se operado em mim a derradeira transformação, em segundos voltara eu a minha juventude, a idade da beleza, da firmeza, da ignorância e sobretudo da arrogância.
Era outra vez aquela menina que eu quase não via há quinze anos. Fiquei estupefacta. Um rolo de pensamentos ocorreu ao mesmo tempo a minha cabeça a ponto de não conseguir descernir qualquer ideia coerente. Assustava aquele estado.
E o que fazer agora?
Estávamos ali os três boquiabertos com a nova situação. E todos tinhamos adquirido um bem ao mercenário, o meu marido um charuto e a minha filha um lapis de cor amarelo; à criança nada aconteceu, rigorosamente. Ao meu marido, aconteceu-lhe o mesmo que me acontecera a mim. Sem mais voltou a idade em que a beleza ousava ser arrogante de tanto que nos afrontava.
Eu sou médica de profissão e o meu marido advogado.
Quando nos deparámos com o mercenário, iniciávamos mais uma jornada laboral e passaríamos antes pela escola da nossa filha para deixa-la. Olhamo-nos questionados e decidimos voltar para casa e avaliar os danos. Éramos jovens, uma vez mais. Isso era o que havia alterado. Mas continuávamos pais, profissionais, vizinhos e colegas de outras pessoas que inquiririam aquela mudança.
Falamos sobre isso por breves instantes porque o meu marido insistia que devêssemos esperar para ver se o efeito era à curto, médio ou a longo prazo antes de tomarmos qualquer tipo de resolução. Achei coerente. E anui  e esperamos. Ficamos em casa uma semana inteira e nada acontecia. Permanecíamos jovens, lindos e com medo. 

Decidimos então encarar aquela nova vida. 

Eu desloquei-me a minha unidade laboral e nenhum colega reconhecia-me no meu Departamento, as pessoas achavam alguma familiaridade, um traço no rosto, um gesto que se assemelhava a Dra afecta àquele Departamento, mas para todos os efeitos não era eu. E por via disso eu não podia trabalhar. Voltei para casa.
Na verdade lembrava-me de toda a minha ciência, sabia com detalhes a arte de como tratar um paciente em qualquer circinstâncias. Sabia. Mas não me era permitido chegar perto, não conheciam a nova pessoa que eu lhes apresentava apesar de ser eu mesma. Não passava de uma criança que em hipótese alguma teria cursado o tão longo curso de Medicina e quiçá a especialidade que invocava. Era naturalmente impossível e biologicamente incorrecto. Normalmente os jovens naquela  idade frequentavam o ensino pré- universitário, escolhiam a sua vocação.
Eu não existia naquela forma para eles.
E facto semelhante aconteceu ao meu marido. Tribunal algum, escritório nenhum aceitava-o como profissional qualificado. Ele também não existia naquela forma para eles.
Criamos um mundo, novo, nosso. Éramos agora dois jovens pais, desempregados e enquanto o tempo corria nos apercebíamos dos contornos que a mudança implicaria. Parecia-nos aterrador, irremediável  e definitivo.
Estavamos juntos e sozinhos.
Passaram meses tortuosos que sobrevivemos a custa da caridade alheia. Era hora de pensarmos em alternativas viáveis. Havia uma vantagem no nosso infortúnio, éramos jovens sem a tolice que acomete aos jovens normais. Tinhamos sabedoria de pessoas de trinta anos apesar de aparentarmos pouca idade. Ninguém conseguia ver tal facto, sabiamo-lo nós. Aproveitaríamos isso a nosso favor. Faríamos coisa de gente grande e as pessoas teceriam admiração a volta de nós e viveriamos disso.
Iniciamos a nossa jornada na arte de adivinhar e responder para os profissionais das àreas em que cada um de nós estava adistricto. Foi sucesso brutal! Toda gente impressionava-se com tamanha inteligência em tão pouca idade, sem nunca desconfiar que nós frequentamos e terminamos os cursos de que falavamos, nós sabiamos aquela arte porque tivemos ferramentas para o efeito.
Só que os anos passavam por todos, deixando marcas de passagem que eram visiveis a olho nú. A nossa anormalidade começou a fazer-se sentir, os segundos, os minutos, as horas, os dias, os meses, os anos passavam para nós sem deixar qualquer resquício. Continuavamos jovens, belos e actores da nossa própria história.
Ainda que tentássemos explicar, a juventude eterna tal como a imortalidade, só nos afigura possível na imaginação e ninguém acreditaria em uma  palavra que dissessemos, até a história nos desmentia na nossa vivência sem precedentes. Restávamos nós.
Com a passagem dos anos a nossa filha foi adquirindo habilidades que eram impensáveis. Se a profecia se mostrava clara para os que tinham ultrapassado a juventude, misteriosamente se apresentava para as crianças que apesar de permanecerem crianças, perdiam totalmente a criança nelas. O facto é que nunca mais cresciam. Mas havia a maturidade de adultos nelas, e uma amargura dos velhos,  sofrimento talvez ligado ao facto de serem privadas das outras duas fases a que o ser humano comum esta sujeito antes da morte.
Se o futuro se afigura longe para um jovem imagine para uma criança que tem a infância para eternidade?
II Do conhecimento do nosso corpo
Apesar de jovens continuávamos a ser um casal e assim como qualquer outro, havia necessidades que o corpo exigia satisfeitas. Nada tinham a ver com a alimentação, essa em nada modificou-se, a única diferença colossal prendia-se com o facto de já não ser possível para nós acumular qualquer tipo de gordura.
Diferentemente afectou a nossa sexualidade que passou a ser  de uma intensidade violenta como se quisessemos que o mundo sentisse connosco o nosso orgasmo particular. Quando refiro-me a violência quero dizer física, que ocorria depois do orgasmo, que durava um pouco mais do que o tempo que um homem normal leva a cópula inteira.
Era como se o sémen fosse feito de pequenos cristais que a vagina não podia albergar por muito tempo. O exercicio da lavagem era quase que uma tortura. A sensação  assemelhava-se a retirar das entranhas pequenos pedaços  de vidros que ao sairem provocavam outro tipo de cortes. E depois da retirada a vagina ficava em dor de dentes, um latejante doloroso.
Nos dias subsequentes amavamo-nos com ódio. Não podiamos dar-nos ao luxo de nos odiarmos apenas sendo só nós três no nosso universo. Tinhamos que preservar o amor mesmo nos momentos em que nos doíamos mais. Era ali que o amor era preciso.
Os anos não cessavam de correr e nós três permaneciamos iguais ao dia em que ao acaso, um mero acaso nos deparamos com o mercenário dos sonhos. Vendeu-nos a ambição da humanidade e compramos uma vida de repetições, cansaços e de sempres.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

porque ninguém via?

Eram as marcas interiores que doiam. Eram essas marcas que sem precisarem de se mostrar, de se exibirem, pulsavam mais. Penso que devia haver alguma dignidade nessa cicatriz em si, devia...

O leão em mim

A falta de ti emerge a flôr da pele e tudo que sou são urgências. É na violência que melhor expresso a minha necessidade de ti. Ainda que me cale, o gesto falho se impõe. Berro nos meus actos, culpa tua! Afaga-me e dessipar-se-à todo o selvagem que se insiste.

Sinto-me uma criança que sem a ferramenta fundamental da comunicação precisa recorrer ao primitivo para se fazer ouvir. E quando finalmente resolvemos as nossas urgências doo o cordeiro que sou ao teu lado.