Como que por um acaso, esbarramos a porta de casa com o mercenário que mudou definitivamente as nossas vidas. Intitulou-se vendedor de sonhos, os maiores que a humanidade almeja eternizar: a Juventude e a imortalidade.
A principio pareceu-nos cómico aquele encontro e principalmente aquele tipo de abordagem cigana, até porque só em contos de fada e na sensualidade vampiresca é que a juventude eterna revela-se possível e exequível. Mesmo reticentes ouvimos a história do homem aparentemente comum, com feições precisas e grosseiras.
O facto que nos prendeu a atenção foi a quantidade de coisas que o homem carregava consigo, pareceu-nos a prior tratar-se de tralha velha e por isso associamo-lo a mendicidade. No entanto, as suas falas eram de uma convicção dogmática, ao ouvi-lo, podíamos sentí-lo ao que nos detívemos por alguns instantes.
O facto que nos prendeu a atenção foi a quantidade de coisas que o homem carregava consigo, pareceu-nos a prior tratar-se de tralha velha e por isso associamo-lo a mendicidade. No entanto, as suas falas eram de uma convicção dogmática, ao ouvi-lo, podíamos sentí-lo ao que nos detívemos por alguns instantes.
Disse-nos então o mercenário que quem de boa fé adquirisse de seus pertences, teria a dádiva da juventude e da imortalidade. Mais do que a certeza, moveu-nos a fé e uma certa dose de curiosidade, de modo que cada um de nós optou por tomar por seu o bem que queria adquirir para si. Eu puxei para mim a carteira, castanha e desbotada. Uma carteira que não tinha adereço especial ou alguma coisa mais que a valorizasse. Era apenas uma carteira comum.
Mal toquei nela transformou-se substancialmente aos meus olhos. Era uma carteira velha, isso não mudou, parecia uma avó querida que a gente ama a exaustão. O uso excessivo ou a “muita” idade das avós sempre faz-me pensar em amor, na preservação dos laços. Eu na verdade, sempre amei a consistência das coisas, das relações,das pessoas e aquela carteira despertava em mim esse afecto e eu quis pronunciá-lo ao comprá-la para mim.
É bem verdade que o afecto não teve a sua contribuição naquela relação nova que se criava entre mim e a carteira, no entanto, teve maior relevância a vontade da carteira em que eu fosse a sua legítima proprietária, como se ela tivesse me escolhido criteriosamente. Ousava dizer até que chamou-me pelo primeiro nome.
Paguei o preço, irrisório, diga-se.
Tinha eu na altura 34 anos. Já se me viam as primeiras rugas, principalmente as que contornam o nariz e as das dobras dos olhos ao sorriso. Sentia-me uma mulher madura que vivera toda a intensidade da sua idade. Aproveitara pedagógica e religiosamente cada fase que a vida apresentara-me, sem dúvida amava cada ruga do meu rosto; não digo a beleza da ruga, sim a história que esta contava. Nunca fora daquelas pessoas que se queixam da idade. Pelo contrário apreciava cada nova etapa com o fervor da descoberta que acontece na puberdade a todos.
Era casada havia onze anos e mãe de uma linda menina de dez anos. Tinha uma história atrás de mim. Era o que eu mais amava em mim. Podia dividir a minha vida em passado, presente e futuro. A vida comigo seguia o seu curso.
Fiquei estarrecida a olhar a carteira e não olhei para mim. Havia-se operado em mim a derradeira transformação, em segundos voltara eu a minha juventude, a idade da beleza, da firmeza, da ignorância e sobretudo da arrogância.
Era outra vez aquela menina que eu quase não via há quinze anos. Fiquei estupefacta. Um rolo de pensamentos ocorreu ao mesmo tempo a minha cabeça a ponto de não conseguir descernir qualquer ideia coerente. Assustava aquele estado.
E o que fazer agora?
Estávamos ali os três boquiabertos com a nova situação. E todos tinhamos adquirido um bem ao mercenário, o meu marido um charuto e a minha filha um lapis de cor amarelo; à criança nada aconteceu, rigorosamente. Ao meu marido, aconteceu-lhe o mesmo que me acontecera a mim. Sem mais voltou a idade em que a beleza ousava ser arrogante de tanto que nos afrontava.
Eu sou médica de profissão e o meu marido advogado.
Quando nos deparámos com o mercenário, iniciávamos mais uma jornada laboral e passaríamos antes pela escola da nossa filha para deixa-la. Olhamo-nos questionados e decidimos voltar para casa e avaliar os danos. Éramos jovens, uma vez mais. Isso era o que havia alterado. Mas continuávamos pais, profissionais, vizinhos e colegas de outras pessoas que inquiririam aquela mudança.
Falamos sobre isso por breves instantes porque o meu marido insistia que devêssemos esperar para ver se o efeito era à curto, médio ou a longo prazo antes de tomarmos qualquer tipo de resolução. Achei coerente. E anui e esperamos. Ficamos em casa uma semana inteira e nada acontecia. Permanecíamos jovens, lindos e com medo.
Decidimos então encarar aquela nova vida.
Eu desloquei-me a minha unidade laboral e nenhum colega reconhecia-me no meu Departamento, as pessoas achavam alguma familiaridade, um traço no rosto, um gesto que se assemelhava a Dra afecta àquele Departamento, mas para todos os efeitos não era eu. E por via disso eu não podia trabalhar. Voltei para casa.
Decidimos então encarar aquela nova vida.
Eu desloquei-me a minha unidade laboral e nenhum colega reconhecia-me no meu Departamento, as pessoas achavam alguma familiaridade, um traço no rosto, um gesto que se assemelhava a Dra afecta àquele Departamento, mas para todos os efeitos não era eu. E por via disso eu não podia trabalhar. Voltei para casa.
Na verdade lembrava-me de toda a minha ciência, sabia com detalhes a arte de como tratar um paciente em qualquer circinstâncias. Sabia. Mas não me era permitido chegar perto, não conheciam a nova pessoa que eu lhes apresentava apesar de ser eu mesma. Não passava de uma criança que em hipótese alguma teria cursado o tão longo curso de Medicina e quiçá a especialidade que invocava. Era naturalmente impossível e biologicamente incorrecto. Normalmente os jovens naquela idade frequentavam o ensino pré- universitário, escolhiam a sua vocação.
Eu não existia naquela forma para eles.
E facto semelhante aconteceu ao meu marido. Tribunal algum, escritório nenhum aceitava-o como profissional qualificado. Ele também não existia naquela forma para eles.
Criamos um mundo, novo, nosso. Éramos agora dois jovens pais, desempregados e enquanto o tempo corria nos apercebíamos dos contornos que a mudança implicaria. Parecia-nos aterrador, irremediável e definitivo.
Estavamos juntos e sozinhos.
Passaram meses tortuosos que sobrevivemos a custa da caridade alheia. Era hora de pensarmos em alternativas viáveis. Havia uma vantagem no nosso infortúnio, éramos jovens sem a tolice que acomete aos jovens normais. Tinhamos sabedoria de pessoas de trinta anos apesar de aparentarmos pouca idade. Ninguém conseguia ver tal facto, sabiamo-lo nós. Aproveitaríamos isso a nosso favor. Faríamos coisa de gente grande e as pessoas teceriam admiração a volta de nós e viveriamos disso.
Iniciamos a nossa jornada na arte de adivinhar e responder para os profissionais das àreas em que cada um de nós estava adistricto. Foi sucesso brutal! Toda gente impressionava-se com tamanha inteligência em tão pouca idade, sem nunca desconfiar que nós frequentamos e terminamos os cursos de que falavamos, nós sabiamos aquela arte porque tivemos ferramentas para o efeito.
Só que os anos passavam por todos, deixando marcas de passagem que eram visiveis a olho nú. A nossa anormalidade começou a fazer-se sentir, os segundos, os minutos, as horas, os dias, os meses, os anos passavam para nós sem deixar qualquer resquício. Continuavamos jovens, belos e actores da nossa própria história.
Ainda que tentássemos explicar, a juventude eterna tal como a imortalidade, só nos afigura possível na imaginação e ninguém acreditaria em uma palavra que dissessemos, até a história nos desmentia na nossa vivência sem precedentes. Restávamos nós.
Com a passagem dos anos a nossa filha foi adquirindo habilidades que eram impensáveis. Se a profecia se mostrava clara para os que tinham ultrapassado a juventude, misteriosamente se apresentava para as crianças que apesar de permanecerem crianças, perdiam totalmente a criança nelas. O facto é que nunca mais cresciam. Mas havia a maturidade de adultos nelas, e uma amargura dos velhos, sofrimento talvez ligado ao facto de serem privadas das outras duas fases a que o ser humano comum esta sujeito antes da morte.
Se o futuro se afigura longe para um jovem imagine para uma criança que tem a infância para eternidade?
II Do conhecimento do nosso corpo
Apesar de jovens continuávamos a ser um casal e assim como qualquer outro, havia necessidades que o corpo exigia satisfeitas. Nada tinham a ver com a alimentação, essa em nada modificou-se, a única diferença colossal prendia-se com o facto de já não ser possível para nós acumular qualquer tipo de gordura.
Diferentemente afectou a nossa sexualidade que passou a ser de uma intensidade violenta como se quisessemos que o mundo sentisse connosco o nosso orgasmo particular. Quando refiro-me a violência quero dizer física, que ocorria depois do orgasmo, que durava um pouco mais do que o tempo que um homem normal leva a cópula inteira.
Era como se o sémen fosse feito de pequenos cristais que a vagina não podia albergar por muito tempo. O exercicio da lavagem era quase que uma tortura. A sensação assemelhava-se a retirar das entranhas pequenos pedaços de vidros que ao sairem provocavam outro tipo de cortes. E depois da retirada a vagina ficava em dor de dentes, um latejante doloroso.
Nos dias subsequentes amavamo-nos com ódio. Não podiamos dar-nos ao luxo de nos odiarmos apenas sendo só nós três no nosso universo. Tinhamos que preservar o amor mesmo nos momentos em que nos doíamos mais. Era ali que o amor era preciso.
Os anos não cessavam de correr e nós três permaneciamos iguais ao dia em que ao acaso, um mero acaso nos deparamos com o mercenário dos sonhos. Vendeu-nos a ambição da humanidade e compramos uma vida de repetições, cansaços e de sempres.